agosto 04, 2017

1972

Esta semana, a propósito de um artigo que anda aí a circular pelas redes sociais, sobre uma hipotética carta de uns pais para uns avós, fiz uma viagem mental à minha infância.
Realmente os putos que nasceram nos anos 70, como é o meu caso, não sei como é que chegaram vivos aos dias de hoje. Eu acho que nem fui das piores, em conversas que tenho tido com amigos, às vezes ouço cada história que até me arrepio. Mas arrepio-me porque vivo nos dias de hoje, porque quando eu própria vivia essas histórias ou presenciava essas histórias, numa base diária, as coisas passavam-me mesmo ao lado e a tendência era para pensar que “olha, acontece, podia ter sido muito pior”.
Hoje em dia e com duas filhas a quem eu proíbo de fazer quase TUDO o que represente sequer uma ameaça de perigo, sinto-me uma mariquinhas que tem medo de tudo e que na realidade nem acha piada nenhuma a coisa nenhuma, porque tudo pode ser potencialmente perigoso, ter uma ameaça escondida, etc, etc, etc.
Quando era miúda, lembro-me de ter crescido um bocadinho às três pancadas. “Crescer ao pontapé” era um bocado característico nos anos 70/80 mas a verdade é que os que por cá continuam têm recordações do caraças. As minhas recordações são boas e más. Dentro das boas estão os dias que, sozinha em casa com as minhas duas irmãs, (sim, nós ficávamos sozinhas desde muito pequenas e quando digo muito pequenas era MUITO pequenas), se ouvia na rua a buzina do Sr. Luís que chegava à Rua M na sua mota de gelados e apertava a buzina para chamar os miúdos todos para um gelado. 2,50, 5 escudos, 10 escudos e 25 escudos eram os preços daquela iguaria pela qual esperávamos ansiosamente. O Sr. Luís parava a sua mota no cima da rua e lembro-me como se fosse hoje de “scanear” a casa toda à procura de moedas para, pelo menos comprar um geladinho de dois e quinhentos.
Também me lembro com muita saudade das brincadeiras que fazíamos na rua. A Rua M era uma rua sem saída onde o perigo de atropelamento era, digamos… zero! Brincava-se à macaca, ao dentro e fora, ao elástico, à bola, aos países, às Donas de Casa, à apanhada, às escondida, ao bate o pé, ao cavalinho perfeito, andávamos de bicicleta. Lembro-me que saía de casa cedo e era capaz de andar um dia inteiro de uma ponta à outra da rua, cima e baixo, cima e baixo, cima e baixo, na minha bicicleta “Simca” que já tinha sido da minha irmã mais velha e que passou para mim e que já era mesmo muito velhinha e antiquada mas que servia o propósito, que era andar cima e baixo, cima e baixo, cima e baixo. Foi nesta bicicleta que dei o maior espalhanço da minha vida, que me custou parte dos dois dentes da frente e a pele toda do buço!
Dia memorável esse, com a minha vizinha Anabela a descer as escadas para ir procurar o resto dos dentes. :-)
O primeiro desafio foi logo a Maria Teresa tentar arrancar-me a mão da boca, para ver a extensão do estrago. E quem é que dizia que eu descolava a mão da frente da boca? Já não me lembro como é que ela conseguiu mas aquela primeira visão do que parecia um acidente grave de mota, eu nunca mais me vou esquecer. Não há fotos para documentar, com muita pena minha. Mas também, naquele tempo, não havia Facebook, logo ninguém tirava fotos às desgraças!
Esse dia valeu-me uma ida à Cruz vermelha para fazer um penso branco enorme na bigodeira e valeu-me também a vergonha da minha vida quando ao regressar à Rua, ter a tribo toda à espera e um deles dizer: “Epá!! Esse espalhanço foi mesmo mau, ficaste mais velha! Até já vens com bigode branco!!!” AHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAH! Gargalhadas, gargalhadas, gargalhadas.
Eu é que não achei piada nenhuma. Passei as semanas seguintes a ver-me ao espelho do pchiché do quarto dos meus pais, a tapar o arco que os meus dentes formavam com o lábio inferior (conseguem visualizar?), na tentativa de ver como ficaria depois de arranjar os dentes. Uma coisa era certa, havia a real hipótese de ficarem microdentes.
Mas pronto, há mais recordações boas. Há os dias em que eu e a minha querida amiga de infância pegávamos num Tupperware, que by the way, era “A” marca daquela época, e íamos para “os montes” apanhar amoras. E apanhávamos aos kilos e kilos! A nossa alegria quando encontrávamos uma ramada com aquelas bem grandes e pretas, normalmente estavam quase sempre nos sítios mais inacessíveis e apanhá-las significava muitas picadas. Mas eram vitórias!! E depois comíamos aquilo com a satisfação dos heróis de guerra! Grandes barrigadas de amoras que apanhávamos.
“Os Montes” eram na realidade, uns terrenos do outro lado da rua onde havia hortas dos moradores dos prédios das ruas ali à volta. Mais para cima, havia uma espécie de “montinhos” com eucaliptos para onde íamos fazer picnics. E todos nós, a criançada da Rua M e afins atravessávamos diariamente a estrada que separava a nossa rua dos “montes” . Acham que algum dia algum miúdo ficou debaixo de um carro? Não! E como não? Não sei!
Ah e não havia cá passadeiras! Isso era uma modernice que só muito mais tarde surgiu por aquelas bandas.

Comíamos azedas e caíamos e esfolávamos os joelhos todos ao ponto de andarmos dias e dias com os joelhos em sangue, depois formava crosta e arrancávamos a crosta com as mãos todas sujas, e escorregávamos pelos corrimões até ao R/C, descíamos as escadas de dois em dois e de três em três degraus e nunca ninguém caíu ou partiu uma perna. Nos Santos Populares fazíamos uma fogueira enorme, saltávamos por cima dela e mandávamos latas de desodorizante para as latas explodirem! Sujeitos, claro a levarmos com uma lata que saísse disparada, no lombo… nunca aconteceu.
E eu, com 9, 10 aninhos a mandar grandes golos na garrafa de vinho do porto do Sô Rafael, também é uma coisa muito jeitosa. Claro que isso explica muita coisa, este meu desequilíbrio da caixa dos parafusos não vem do nada, não é?
E é isto, meus amigos. A minha geração (uns mais que outros, claro) foi criada ao pontapé, sem mariquices, sem METADE dos cuidados que, por exemplo, hoje tenho com as minhas filhas. As minhas miúdas nunca me pediram para “ir para a rua” e eu nunca tive que gritar por elas à janela, às tantas da noite para virem para casa, como fazia a minha Mãe, quando às 11 da noite eu ainda andava na galderice: “CRISTINA MARIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!!”
E lá vinha eu e o resto da tribo a correr porque se não nos despachássemos, chegávamos a casa e ainda levávamos na corneta que era para aprender. 

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